O ARTISTA E OS MALABARISTAS
Em Laguna, o espetáculo da pesca com a ajuda dos golfinhos fica ainda mais bonito quando visto pelas lentes de Ronaldo Amboni, que de pescador virou um especialista no assunto.
A partir de Fevereiro de 2010, o então representante comercial Ronaldo Amboni ganhou uma câmera fotográfica e mudou de hobby. Em vez de pescar nas horas vagas, passou a fotografar os golfinhos que frequentam o canal de Laguna, ali chamados de botos, e que protagonizam um curioso fenômeno: o da pesca conjunta com os pescadores. Quando os cardumes de tainha entram ou saem pescadores, no canal de Laguna pelo canal, a caminho do mar ou das lagoas que batizaram a própria cidade, os botos empurram os peixes para a margem, onde estão os pescadores, com as redes. Ao cair na água, a tarrafa impede que os peixes escapem pelos lados e é aí que o boto tira proveito, porque entra debaixo das redes e pega o seu peixe — um interessantíssimo caso de trabalho em parceria, onde os dois lados saem ganhando. “Nenhum boto de Laguna foi treinado para fazer isso”, diz Ronaldo, nascido e criado na cidade. “Quem os ensinou foi a natureza, através dos ensinamentos que vêm sendo passados de um boto para outro”.
Em Laguna, a pesca com botos existe há décadas, mas nunca foi documentada com tamanha beleza e dedicação quanto nas fotos de Ronaldo. Se o dia estiver bonito e dando peixe no canal, lá estará ele, deitado na margem ou dentro d´água com sua câmera, clicando o trabalho conjunto de botos e pescadores e extraindo imagens como estas, aqui comentadas por ele mesmo.
“Gosto de fotografar os botos do canal de Laguna deitado na margem, rente à superfície, ou dentro d’água, acompanhando os seus movimentos com a lente. Só assim dá para captar flagrantes como este olhar do boto na direção dos pescadores, que ficam à espera do seu sinal para lançarem as redes. Passo horas vendo a mesma cena e não me canso — aliás, ninguém se cansa de ficar olhando os botos de Laguna. Eles estão sempre no canal de acesso ao porto da cidade, com os pescadores nas margens, mas ambos lado a lado. O trabalho de um depende do outro. E os dois ganham com isso.”
“O mar de Laguna raramente é claro. A proximidade com a foz do rio Tubarão não deixa. Mas, neste dia, em abril do ano de 2013, ele estava excepcionalmente verde. Eu estava no alto do molhe e vi nitidamente um grupo de botos vindo na direção das ondas. Eles sempre fazem isso: chegam com velocidade e deslizam nas ondas. Como os surfistas. Gostam disso. E se divertem. Quando a onda começa a quebrar, dão um salto e voltam na direção contrária à da praia, até que surja outra ondulação. Claro que na praia também dá tainha, mas, para capturá-las, os botos de Laguna preferem o canal, porque ali é mais fácil. Praia, para eles, é como é para a gente: só para se divertir mesmo.”
“Os botos frequentam o canal de Laguna todos os dias, mas são animais livres, que saem para o mar aberto quando querem. Mas, se estiver dando peixe, ficam por ali, rondando os pescadores bem de perto e praticando técnicas avançadas de captura, como girar e atacar os cardumes de barriga para cima, para que os peixes não percebam a sua aproximação, porque aparte de baixo do corpo deles é branca e não cinza. Assim, camuflados, atacam com mais facilidade e ainda produzem movimentos na água que mais parecem balés náuticos. Em Laguna, ninguém precisa de parque aquático para ver um boto de perto.”
“Em pelo menos um ponto, os botos são como os seres humanos: eles também fazem sexo por prazer e não apenas para procriar. junto com os chimpanzés, são os únicos animais que fazem isto. E como fazem ! no canal de laguna, quando não estão “trabalhando” e pegando tainhas junto com os pescadores, boa parte dos botos se dedicam a copular. sem parar. as folias que, às vezes, viram verdadeiras orgias, acontecem a qualquer hora do dia e ja geraram tantas crias que praticamente todos os botos do canal e da cidade foram gerados e nasceram ali mesmo. e a primeira lição que as fêmeas ensinam aos filhotes e como “trabalhar”com os pescadores. meu sonho é conseguir fotografar dentro d’água um desses partos, que inclui até um empurrão da mãe no filhote para fora d’água – o equivalente a nossa palmadinha na bunda dos bebes, após nascimento. ja vi este cena, mas não consegui fotografar. ja boto transando, como estes dois ai da foto , perdi as contas.”
“Os botos tanto podem “trabalhar” sozinhos, quanto em dupla ou em grupos – depende do dia e da situação. A estratégia de pesca deles muda conforme o dia e a quantidade de peixes na água. Como são animais inteligentes e com grande capacidade de comunicação, combinam entre si como irão atacar os cardumes e avisam isso aos pescadores, através de movimentos na superfície. Cabe a eles interpretar os sinais dos botos e jogar a rede na hora exata. Quando a sintonia é perfeita, é peixe na certa.
“A barra de Laguna é uma das mais difíceis da região sul. Mesmo com o molhe de pedras, não é muito fácil entrar e sair do canal onde os botos ficam. Para complicar ainda mais, o antigo molhe tinha uma curva na entrada, que foi inundada com a construção do novo, mas continua lá, debaixo d’água, tornando o lado esquerdo de quem chega pelo mar bem raso e perigoso para os barcos. O jeito é entrar e sair sempre pelo lado do farol, o que obriga os barcos a fazer uma curva na boca da barra e, com isso, enfrentar as ondulações na diagonal. Quem conhece sabe que é só desviar do antigo molhe e pronto. Mesmo assim, nos dias de mar mais agitado, balança um bocado.”
“Todo boto salta bastante. Mas, alguns, saltam mais e mais alto do que os outros. Como este aqui, o Borrachinha, um dos botos mais arteiros do canal de Laguna. Ele é filho do Borracha, que era filho do Tafarel, que, por sua vez, era filho do Latinha, um dos botos mais lendários da região. Os pescadores de Laguna conhecem todos os botos pelo nome, porque acompanham as gerações. O Borrachinha, assim como seus antecedentes, é um bom pescador e, também como os demais botos adultos da sua espécie, não é nada pequeno: tem mais de três metros de comprimento e é capaz de saltar mais do que isso fora d’água. O Borrachinha pula mais do que borracha. Daí o seu nome.”
“Depois que matam a fome, os botos brincam. Às vezes, com a própria comida. Foi o que fez este aqui acima, ao final de um dia de muitas tainhas no canal. Depois de perseguir um peixe desgarrado do cardume por um bom tempo, ele finalmente conseguiu capturá-lo, vindo de baixo, com velocidade, como geralmente fazem. Mas, ao contrário do que ele faria se estivesse com fome, passou a brincar com a presa, atirando-a de um lado para outro. Soltava e tornava a pegar o peixe, como se estivesse se divertindo com isso. E estava mesmo.”
“O auge da estação da tainha é maio e junho. Em maio, no primeiro dia de vento sul em Laguna, são tantas tainhas saindo das lagoas para o mar, pelo canal, que chega a faltar espaço na areia para esvaziar as tarrafas. Já vi pescador tirar mais de 200 tainhas da água, numa só tarrafada. Mas a média, no restante dos dias bons do ano, são 50 peixes por rede – fora os que os botos comem. Quanto mais conhecedor dos botos o pescador for, mais peixes ele pegará. Em Laguna, isso é certo ! Estes dois pescadores da foto, o Safico (de boné azul) e o Adriano, estão entre os mais experientes. Eles conhecem o comportamento de cada um dos mais de 20 botos que frequentam o canal, todos identificados pelas diferenças na barbatana dorsal, e se referem a eles como se fossem velhos amigos. Para os pescadores de Laguna, Boto é como gente: cada um tem o seu jeito. E os bons pescadores são aqueles que conhecem bem as manias dos parceiros.”
“Além dos botos, os pescadores de Laguna têm a companhia constante das gaivotas. Elas ficam nas pedras do molhe, esperando as bobeadas dos pescadores. Quando eles tiram a tarrafa da água e despejam os peixes na margem, precisam ser rápidos, para não perder parte do trabalho para as aves. Como aconteceu neste caso. O pescador deu mole e a gaivota levou o peixe. Indignado, ele largou a tarrafa e foi em busca da ave, nas pedras do molhe, onde recuperou sua tainha, antes que ela fosse devorada. A gaivota perdeu o almoço. E eu ganhei esta foto.”
“Não é porque um boto passou na frente do pescador que isso quer dizer que ali tem peixe - daí o pescador de braços cruzados nesta imagem. Os botos ficam sempre por perto, observando os cardumes a distância, mas só na hora certa dão o sinal para os pescadores jogarem as tarrafas e assim fecharem o cerco. Que sinal é esse ? Depende de cada boto. Cada um deles dá um sinal diferente com o corpo, que os pescadores já conhecem bem. Em seguida, empurram os cardumes para a margem e atacam por baixo, capturando a sua parte – quase sempre um peixe por rede atirada. Os botos não perdem a viagem. Mesmo que o pescador não pegue nada, eles sempre ficam com um peixe, porque, com a rede vindo de cima, o cardume só pode fugir por baixo, justamente onde está o boto. Eles entram debaixo da tarrafa, pegam o peixe, giram o corpo e caem fora, antes que a rede desça totalmente. São, também, malabaristas.”
Na praia do Mar Grosso, vizinha ao canal de Laguna, a convivência entre surfistas e botos é constante. Porque ambos querem curtir as ondas. Só que, vira e mexe, um se assusta com o outro. Já vi muito surfista sair remando feito louco para fugir das barbatanas, mas também já vi boto “freando” na água para não bater de frente com as pranchas. Por isso, além de deslizar nas ondas, os botos também as acompanham saltando. Como fizeram estes dois, num dia de ondas boas para botos e surfistas.”
Fonte: Revista Nautica – Edição Nº46 | Janeiro 2014 ( pág – 48)